Há aquelas que remetem a galinhas, outras que chamam a
atenção por lembrar bonecas. Existem também as simples, mais práticas, como
também algumas que têm várias cabeças, cada uma delas parecendo um animal.
Em cartaz no Museu de História Natural e Jardim Botânico
da UFMG, a exposição Moringas do Vale do Jequitinhonha: Memória preservada,
reúne 39 peças feitas na década de 1970 principalmente em Caraí, município do
Vale reconhecido por sua produção artesanal em barro. O conjunto, que vem a
público pela primeira vez e é o único do gênero numa instituição brasileira,
integra o acervo de arte popular do museu, que agrega um número de 600 objetos
de vários gêneros.
Moringa é um termo indígena; em português, é a boa e
velha bilha. Sua existência remonta a milhares de anos e diferentes culturas.
No Brasil, foram as moringas produzidas pelos artesãos do Vale do Jequitinhonha
que ultrapassaram a função inicial, que é a de transportar água. Na exposição,
com curadoria de Cláudia Cristina Cardoso e consultoria de Joubert Cândido
Rodrigues, são destacados exemplares que acabam contando também um pouco da
história daquela região. “A cerâmica mais criativa do Vale está em Caraí porque
os artesãos não aceitaram trabalhos governamentais”, comenta Joubert.
A partir da década de 1970, quando há o boom da produção
artesanal da região, os nomes mais representativos do local se recusaram a
trabalhar em novos fornos. “Seu Ulisses (Ulisses Pereira Chaves, considerado
por muitos o maior escultor ceramista do Vale), disse que não queria. Dessa
maneira, a parte criativa foi beneficiada, pois não tem afetação nem influência
de encomendas”, continua Joubert. A mostra reúne trabalhos de Ulisses e de
outros artesãos de reconhecida importância, como a família Batista, entre elas
Noemisa Batista dos Santos.
Moringas são encontradas em toda a era pré-colombiana – à
exceção de Cuba e Terra do Fogo, a cerâmica foi produzida em todos os países a
partir do México. “Na época, era uma cerâmica tosca, feita por pura
necessidade”, continua Joubert. Tanto moringas quanto vasilhames e até urnas
funerárias. A produção poderia ser a partir da técnica do levante – em que se
amassa o barro que vai sendo levantado por camadas – ou através do torno,
trazido pelos europeus. A técnica do levante é utilizada até hoje no Vale do
Jequitinhonha.
De
pai para filho - As moringas
decoradas, uma tradição da região, têm seus ensinamentos passados de pai para
filho “desde tanto tempo que nem mesmo eles sabem quando começou. O que dá para
sentir é que os negros que foram para lá já sabiam fazer cerâmica. A junção do
negro com o indígena resultou na cerâmica do Vale”, continua Joubert. Nos
exemplares expostos, a riqueza de modelos e estilos é grande. Há exemplares da
moringa trípode, que tem três grandes bolas que fazem a sustentação do objeto.
“Essas começaram a ser documentadas a partir do século 18. Há alguns autores
que se referem ao culto da fertilidade.”
Existem exemplares das chamadas moringas zoomorfas (que
representam animais), antropomorfa (que se assemelha à forma humana) e até
mesmo uma moringa antropozoomorfa (de um lado a cabeça de um homem; do outro, a
de um sapo). “O grande pontapé para que o trabalho ficasse conhecido foi dado
por Burle Marx, que nos anos 1970 passou a comprar muitas peças de seu
Ulisses”, diz o pesquisador. Também no período, com a Comissão de
Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale) em atividade, os artesãos
foram estimulados a criar. Como já dominavam a técnica, puderam dar asas à
imaginação. “É quando vem o apogeu da arte, que rompe com o utilitário e passa
para o lado artístico”, diz Joubert. “Dona Izabel (Izabel Mendes da Cunha)
contava que fazia moringas e colocava cabeça de bonecas”, acrescenta. A partir
dessa experiência ela vai desenvolvendo seu trabalho até criar as famosas
bonecas do Vale, hoje referência internacional no artesanato. Informações: www.mhnjb.ufmg.br
Conservação e restauro - A exposição Moringas do Jequitinhonha ocupa uma das quatro salas de
exposição temporárias do Museu de História Natural. No espaço, até então havia
uma exposição de física e química, que foi desativada. A intenção é a partir de
agora dedicar a área para o acervo artístico da instituição. Para 2015, está
prevista a instalação do laboratório de conservação e restauro, que vai
funcionar numa sala contígua à de exposição. “O visitante vai ter a
oportunidade de ver o acervo e também o trabalho dos restauradores junto à
cerâmica”, afirma a curadora Cláudia Cristina Cardoso. De acordo com ela, a
perspectiva é que a coleção de arte popular – que inclui ainda peças
utilitárias como bules, xícaras, jarros, e decorativas, como bonecas e animais
– seja apresentada aos poucos ao público.
FONTE: Jornal Estado de Minas, via Aconteceu no
Vale.